terça-feira, 5 de novembro de 2013

MADELEINES E SAUDADE





Estava nesse último domingo chuvoso, com cara de cobertor quentinho e uma boa xícara de café quente, com saudades do filhote mais velho que está longe, longe, embora esteja bem perto do coração e ao alcance das maravilhas tecnológicas que me fazem falar com ele o dia todo, o que ameniza um pouco a sua ausência.

Daqui a uns dias, o mais novo também zarpa, embora a princípio por um período menor, mas necessário para seu descanso físico e mental. E para o meu também, porque não? nada de ficar pegando no pé dele para comer, nada de ficar chateando o coitado com o horário de dormir...às vezes esqueço que na idade dele eu já era uma pré-revolucionária, fazendo pichações pelos muros brancos que aparecessem pela frente.

Mas como diz Belchior e sem nenhum demérito para meus queridos pais, tão amados, 

"...Minha dor é perceber 
Que apesar de termos 
Feito tudo o que fizemos 
Ainda somos os mesmos 
E vivemos 
Ainda somos os mesmos 
E vivemos 
Como os nossos pais...

(Como Nossos Pais, de Belchior)

Talvez como eles, me pego olhando as horas nas poucas vezes em que meu pequeno sai de casa, ocupado que está com o Enem e o seu entorno: cursinho, provas e simulados. Mas, diferentemente deles, não tenho que ligar de um orelhão de vez em quando para dizer que estou bem e os piquetes não me tiraram nenhum pedaço. Vivemos hoje numa democracia, conquistada a ferro e fogo.

Isso não quer dizer que nadamos em mar de azeite. Como disse frei Betto em sua última palestra aqui em Rio Branco, Acre, o recado dos milhares de jovens que foram às ruas recentemente é claro: eles melhoraram de vida, mas não se sentem incluídos politicamente. E se sentir incluído políticamente vai muito além dos kkkkkkkk's do facebook. Quero crer que conseguiremos.

Mas voltando aos meus filhotes e do tamanho do orgulho que sinto deles, passo boa tarde do meu tempo na ansiedade de alimentá-los: claro, também tem frutas e legumes, e saladas e carnes grelhadas. Mas não resisto em oferecer um bolinho ou biscoitinho quentes, saindo do forno, ou um pedaço de torta ou empadão. Quando eram pequenos, tomavam água de coco direto, comiam pratos gigantescos de salada e montes de frutas. Refrigerante, só no final de semana e olhe lá.

Cheguei ao ponto de proibir qualquer doce para o mais velho até uns quatro anos de idade. Levava mel para a escola e nem biscoito recheado era permitido. Uma vez quase tenho um troço quando diante da proibição geral e em visita à casa de meus pais, vi meu velho dando para ele um Sonho de Valsa. Escondido, é claro.

Com o mais novo, relaxei um pouco e ele terminou tendo mais acesso a doces. Não sei se adiantou muito: o mais velho é uma formiguinha e o mais novo não dá muita bola para bolos e docinhos. Mas, tirando a preguiça de descascar laranja, eles continuam adorando frutas e legumes, saladas e água de coco. Menos mal. 

Um dia desses, o mais velho me mandou uma mensagem, indignado. Comprou uma geléia e não gostou nada do sabor. A marca é boa, mas chegamos à conclusão que por trás da geléia que ele comia aqui em casa, feita com frutas fresquinha, há muito amor. E isso não tem marca industrializada que dê jeito.  Portanto, para agradar meus pequenos e o maridinho, os amigos e os familiares, nada como lembrar das madeleines, bolinho francês imortalizado na obra de Proust.

Ao provar uma xícara de chá com um singelo bolinho em forma de concha (a madeleine) o escritor evoca na memória a infância passada em Combray. Uma torrente de sentimentos vem à tona e serve como inspiração para uma das maiores obras da literatura mundial, o romance Em Busca do Tempo Perdido. No primeiro volume, No Caminho de Swann, está a passagem abaixo, transcrita do blog Malagueta - Palavras Boas de Se Comer. Peço licença ao blog, uma vez que meu livro está dentro de sabe lá qual caixa desde nossa mudança.
(veja a matéria em

Trecho:

(…) É assim com o nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora de seu domínio e do seu alcance, nalgum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só de acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não encontremos nunca.
Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o teatro e o drama do meu deitar não mais existia para mim, quando, por um dia inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me chá, coisa que era contra os meus hábitos. A princípio recusei, mas, não sei por quê, terminei aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que parecem moldados com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena.
Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal.
De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligado ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde aprendê-la? Bebo um segundo gole em que não encontro nada demais que no primeiro, um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim.
A bebida a despertou, mas não a conhece, e só o que pode fazer é repetir indefinidamente, cada vez com menos força, esse mesmo testemunho que não sei interpretar e que quero tornar a solicitar-lhe daqui a um instante e encontrar intacto à minha disposição, para um esclarecimento decisivo. Deponho a taça e volto-me para o meu espírito. É a ele que compete achar a verdade. Mas como? Grave incerteza todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? Não apenas explorar: criar. Está em face de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar na sua luz. (…)
No Caminho de Swann, extraído do cap. I, ed. Abril, tradução de Mario Quintana, citado pelo blog Malagueta - Palavras Boas de Se Comer

As madeleines aqui apresentadas são uma receita executada pela chef Rachel Khoo, no programa A Pequena Cozinha em Paris, do canal GNT, da Sky,  receita esta dada por uma amiga dela, Frankie Unsworth. Fiz a receita original, mas a quantidade de manteiga deixou o bolinho muito empapado. Reduzi a manteiga para a metade e ficou perfeito, nem seco nem amanteigado demais. Não fiz o creme de limão (lemon curd) que o acompanha por preguiça. Mas coloquei sementes de chia, pedaços de gengibre cristalizado e pedaços de chocolate meio amargo com 85% de cacau, ficou muito bom. Especial para tomar com uma bela xícara de chá e quem sabe, servir de inspiração para escrever um belo romance.


As forminhas para madeleine tem o formato de pequenas conchas
Madeleines (adaptadas) 

Ingredientes 

Para a massa

100 g de manteiga de boa qualidade, derretida e esfriada
130 g de açúcar 
200 g de farinha de trigo sem fermento
raspas da casca de um limão (usei o siciliano. Se usar o Tahity, reduza a quantidade)
03 ovos
10 g de fermento em pó (ou 02 colheres de chá)
60 ml de leite
20 ml de mel
Açúcar de confeiteiro para polvilhar (atenção, não é o impalpável. Usei Glaçúcar, da União)
Pedaços de gengibre cristalizado, chocolate meio amargo e sementes de chia, opcionais

Modo de Fazer

Para a madeleine

De preferência, você deve começar esta receita na véspera. Bata os ovos e o açúcar até esbranquiçar. Em outra tigela, coloque a farinha, o fermento e as raspas de limão. Reserve. Na tigela em que bateu o ovo, acrescente o leite, o mel e a manteiga derretida e esfriada. Misture devagar e acrescente a farinha com o fermento e as raspas. Misture até ficar bem homogêneo. Cubra com filme plástico e deixe na geladeira de um dia para o outro. No outro dia, acenda o forno em 180 graus. Caso não tenha as forminhas próprias para madeleine, use forminhas de empada ou cupcake. Passe manteiga e enfarinhe bem todas elas e vá colocando porções de massa sem encher demais. Caso use, coloque por cima pedacinhos de gengibre cristalizado, sementes de chia ou pedacinhos de chocolate meio amargo. Leve ao forno já quente até dourar. Retire as madeleines das forminhas após alguns minutos e aguarde esfriar um pouco. Polvilhe com açúcar de confeiteiro. Se usar o creme, não é necessário colocar o gengibre ou os outros, fica a seu critério. É uma delícia para comer com uma xícara de chá ou café. Experimente! 

Obs: deixo de fornecer a receita do lemon curd utilizado por Rachel Khoo pois não a fiz para testar e observei uma inconsistência na receita fornecida no site do GNT. Mas é fácil pesquisar na internet uma receita alternativa, à base de limão siciliano, gemas, manteiga, açúcar e suco de limão, que deve ser aplicado no bolinho com saco e bico de confeitar.




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Para ouvir Como Nossos Pais na bela voz de Elis Regina, acesse: 

2 comentários:

  1. já estou preparando a lista das comidas que quero nas férias mãe, a geléia estou comendo entre uma torrada ou outra (só para não estragar) bjs - Ian

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  2. Filho querido, você e seu irmão são minha constante fonte de inspiração, assim como Davi e Mariana, filhotes do coração. Pode fazer a lista ,estou preparada!! Beijo da mãe saudosa,
    Patrycia

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